quinta-feira, 2 de junho de 2011

Paixão 2003

Era aquele cheiro estranho, de café, cigarro e solidão que me ligava a ela. Na cesta de compras que ela pedia pelo telefone nunca se via frutas ou verduras, nunca se via nenhum desses produtos naturais tão em voga hoje em dia. No corredor, nosso espaço em comum, não se sentia aquele cheiro de feira de manhã cedinho, cheiro de natureza, de coisa fresca, de flores, de vida. Ela estava mais para o excesso, para os queijos, para as carnes gordas, para o trágico.  Digo isso porque no início eu me incomodava, até acendia uns incensos para espantar aquela energia , sabe ? , sei lá, se eu trouxesse uma moça pra namorar, ia ser chato, não é, não ? , teria que explicar que cheiro era aquele. Não gosto de fofocas, entende ? Procuro manter um bom aspecto, até esses dias gastei uma boa grana comprando o novo perfume da armani, as mulheres gostam, sacou ? Quando o entregador chegava, eu, às vezes, espiava através do olho mágico. Queria vê-la. Ela nunca aparecia. Enfim... Acabei me acostumando com sua, digamos, ausente presença. De sua porta, só o ruído agônico da tv, eternamente ligada, noite e dia, dia e noite. Ninguém a visitava, tampouco a procurava. Eu mesmo só sabia dela pelo que se comentava a boca miúda. Depois de cinco anos aqui estabelecido e sem jamais ter uma vaga idéia de sua fisionomia, comecei a me intrigar. Pode confiar em mim, quando eu fico com a pulga atrás da orelha, alguma coisa vai acontecer! Minha tia sempre dizia : esse rapaz tem um dom , e me pedia pra lhe contar meu sonho da noite anterior, depois corria pra jogar no bicho, ali mesmo, na banca da rainha elisabeth com a nossa senhora. Sempre morei aqui, é meio esquisita essa fauna de tipos exóticos, velhos e putas, mas o tempo passa, o ser humano se acostuma a tudo. Pois bem, descobri  através do porteiro – olha, uma coisa eu aprendi : sempre se informe com os porteiros, eles vivem calados mas sabem de  tudo - que quando atingira 200 quilos, há nove anos atrás, e já não passava pela própria porta - muito menos entrava no elevador - decidira nunca mais sair de casa. Eu moro no 402, é aquele ali de fundos, num apartamento com janelas antigas, acolhedoras, através das quais o Corcovado se mostra inteiro pra mim, me abençoando todas as manhãs. Salve, Oxalá. Nessa cidade de meu deus , vale viver só por benção divina mesmo... Essa violência toda , meu chapa , só me faz querer sair da cidade, quem sabe quando eu me aposentar ?  Eu me apaixonei por esse edifício desde o primeiro momento, adoro velharias , desde pequeno. Além do mais, esse povo metido quer é conforto e luxo, preferindo os apartamentos com toda a tecnologia disponível, câmeras secretas, garagem informatizada , prevenção contra bala perdida, playground pra filharada, coisa e tal, assim consegui negociar com o proprietário um aluguel mais em conta. Isso sem levar em consideração que os dormitórios e demais aposentos são bem maiores, não é, não ? Eu não sou o tipo de homem que gosta de conversar , me sinto muito só, sabe como é a vida, muito trabalho, muita trapaça, pouca diversão, poucos amigos ... Por causa disso, comecei a querer me aproximar dela. No início era uma brincadeira espiritual, eu ando vidrado naquele indiano, deepak chopra,  “ faça o bem, não importa a quem ” . Por exemplo, toda segunda-feira eu devo exercitar a lei da doação. Não sei se você se interessa, mas pela sua teoria, a cada dia da semana , você deve exercitar uma lei específica, dentro de um sistema metafísico esboçado por ele, vou te emprestar o livro, qualquer hora dessas, mas veja, é dois v, vai e volta, viu ? Ou então você pode comprá-lo ali mesmo na barão de ipanema, eles dão desconto, diz que é meu amigo, livro é bom ter em casa, não concorda ? Depois a curiosidade foi aumentando, aumentando,




tornou-se quase uma obsessão, eu precisava saber o que a mantinha viva, eu precisava de sua coragem de viver isolada da realidade, eu queria que ela
fosse a mãe que eu não tive. Nós poderíamos cuidar um do outro, eu sem família, ela também... Quando eu chegasse em casa, de noite, cansado da labuta, nós tomaríamos um chá com bolo de maracujá que vende ali na santa clara, ele vem até com as sementes em cima,  eu contaria pra ela como foi meu dia, quem sabe a convencesse a entrar numa dieta, quem sabe ela emagrecesse e até achasse bom passear pelo posto seis aos domingos, quem sabe ela gostasse de ver a estátua do Drummond - por quê botaram a estátua de costas pro mar? Quem sabe ela  apreciasse poesia e quando nós tomássemos café de manhã, light e sem cafeína, iogurte sem nata, leite sem lactose, pão sem farinha e margarina sem colesterol, eu até lesse pra ela a máquina do mundo, êta poema difícil de entender! Conhece?  Outro poeta que eu acho muito interessante é o João Cabral, esse aí se superou, não é, não ? Quem sabe ela conhecesse profundamente “ psicanálise do açúcar ” e pudéssemos estudá-lo juntos. Dizem que é bom ter um hobby, sobreviver é duro, tem que dar um relax de vez em quando, dar vazão à criatividade. Quem sabe com a minha amizade ela não recuperasse a vontade de viver ? Pois é, foi pensando nisso tudo que nas últimas semanas fui criando coragem. Nesses primeiros dias das águas de março, eu já havia me decidido. Por que o rio de janeiro alagou, pedi pra sair mais cedo do trabalho - e nem vim pela lagoa, eu já sabia que o trânsito por ali devia estar ruim mesmo. Esses governantes não valem nada, me diz? Eu, por mim, só voto porque é obrigatório... Subi as escadas para ganhar mais tempo no ensaio mental da minha apresentação, e também porque o médico falou: faça um exercício de vez em quando, comece aposentando o elevador. Ouvi vozes estranhas já no segundo andar. Rapaz, você não imagina o susto que eu levei. Meu coração quase pulou pra fora da boca. Nosso corredor mede dois metros por dois e meio , mais ou menos, e havia umas sete, oito pessoas nele.  Ela estava morta havia três dias e era preciso quebrar as paredes de seu apartamento pro corpo ser removido . Tijolo por tijolo num desenho lógico. Foi a  fofoqueira do 301 quem estranhou um cheiro ácido durante toda tarde, tocou a campainha, insistiu. Chamou a polícia, arrombaram a porta. Eu a vi pela primeira e única vez, ajudei a carregá-la num lençol escada abaixo. Não conseguia pensar em nada, meus olhos colaram nela e não desgrudaram mais. Entrei em transe , foi mágico, intenso, eu era ela. A rua parou para o espetáculo,  a obesidade mórbida à vista dos transeuntes curiosos,  a espera da ambulância, a burocracia, os porteiros dos prédios vizinhos recordando passagens de sua vida, tivera um grande amor mas fora rejeitada. A imprensa, os jornais sensacionalistas, aquele canal da televisão que só passa baixaria, me diz uma coisa : na televisão só passa porcaria ou sou eu o exigente aqui ?  O povo só quer sensacionalismo, afinal é isso que vende jornal, não é, não ? Agora mesmo o início dessa guerra aí foi anunciado antes mesmo da guerra começar, onde já se viu ? É o fim do mundo! Mas não coloca isso aí, senão vai sujar pra mim, lá no emprego, não quero confusão pro meu lado, gosto de ser assim na minha, político... Depois chegou o delegado, apareceu até um gringo de cabelo punk rosa que tirava fotografias digitais e enviava direto pra Finlândia, do seu laptop. Aí apareceu você, eu pensei cá comigo, esse cara vai vir me entrevistar, não te falei?  Minha intuição é tiro e queda, olha, escreve aí, que eu sou escritor em início de carreira , bota aí: “ para Copacabana, ela seria apenas mais uma personagem de sua estranha história, mas para ele , seu vizinho,  ela era a moça do 401 , a mulher que amou sem saber durante cinco anos e com quem não trocou uma sequer palavra. Viver é muito perigoso ”.